Por trás do sincero discurso de ajuda as vítimas da tragédia haitiana, há um jogo de interesses nacionais cada vez mais explícito, afirma ao Estado de São Paulo o professor de relações internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser. Foi assim na ajuda aos países afetados pelo tsunami de 2004 ou pelo furacão Mitch,de 1998. "Com ajuda humanitária, vem o direcionamento político", argumenta.
A tragédia no Haiti desencadeou uma avalanche de ajuda humanitária de vários países. Certamente há uma preocupação real com o povo haitiano. Mas quais são suas implicações geográficas?
Tem crescido muito o número de estudos sobre a relação entre ajuda humanitária e interesse nacional. Em casos como o Haiti existe um sentimento solidário, do qual as pessoas são tomadas - e Estados dão vazão a ele. Trata-se de um fenômeno antigo. A novidade é que, com o fim da Guerra Fria, o volume de ajuda cresceu exponencialmente. O Banco Mundial, por exemplo, aumentou em 80% o envio de recursos sob rúbrica "ajuda humanitária" desde o início dos anos 90. Hoje o mesmo tema é responsável por 30% do orçamento do Pentágono. A ajuda humanitária transformou-se em um projeto político.
Há exemplos concretos sobre essa projeção de poder?
Um exemplo é o tsunami de 2004. Logo depois da tragédia, os EUA enviaram tropas de ajuda ao leste da Ásia, sabendo que o Congresso americano vetava a cooperação militar com a Indonésia por causa da herança da ditadura de Suharto. Sob o argumento de ação humanitária, houve uma proximação militar e ao final, a Casa Branca reverteu o bloqueio do Legislativo. Também com esse tsunami, houve uma aproximação de Washington com o Sri Lanka, que tentava exterminar a guerrilha tâmil. Enfim, por causa do tsunami, os EUA fizeram um grande investimento militar na região
Imagino que esa reaproximação não se limite à dimensão militar.
Há um aspécto econômico fundamental. Quando houve o furacão Mitch na América Central, em 1998, o Banco Mundial e o FMI ofereceram ajuda significativa, mas condicionaram o envio as reformas econômicas. Honduras foi pressionada a privatizar seus portos, aeroportos e sistemas de comunicação. Na ajuda configurou-se um direcionamento do rumo de política econômica que o país devia tomar.
Os EUA parecem ter visto na tragédia do Haiti uma chance de reforçar a imagem de "potência benevolente".
Sem dúvida, mas isso sempre existiu. Os EUA têm um sentimento missionário, o velho discurso de estender a mão aos povos independentemente de fronteiras. Mas isso ocorria também na Guerra Fria. Na tragédia, americanos são os primeiros a se manifestar.
Por que?
Por duas razões: além da ideológica, os EUA são a única potência com meios para agir de imediato. Washington tem bases, soldados, navios e aviões no mundo todo. É interessante também notar que a guerra tornou-se a mesma que para a ajuda humanitária. Há uma militarização da ajuda humanitária.
Roberto Simon.