quinta-feira, 22 de julho de 2010

Pensando Comunidade no Brasil.



Se levarmos em consideração as condições geográficas do Brasil, com seu território alcança 8.514.215,3 Km³ e que neste vasto espaço temos um emaranhado populacional de aproximadamente 190 milhões de brasileiros vivendo em 5.507 municípios, em 27 unidades de Federação chegando a um total de 54.265.618 moradias, e uma diversidade cultural tão ampla quanto seu território. Uma mistura de raças jamais vista em qualquer parte do mundo. Sem contar com a situação socioeconômica de cada grupo social existente por aqui. Diversidade que fez o Antropólogo Darcy Ribeiro se referir a esta nação como a “Nova Roma”, nos dá um caráter pretensioso ao querer tratar de um conceito tão complexo diante de tantas diferenças dentro de nosso país, correndo o risco de analisá-lo de forma generalizante.
Levando em consideração todos os dados iniciais para tratar este assunto, busquei me apropriar da definição do Sociólogo Florestan Fernandes que se refere ao significado da palavra (comunidade) da seguinte forma:
“Comunidade se traduz em um conjunto de pessoas que se organizam sob o mesmo conjunto de normas, geralmente vivem no mesmo local, sob o mesmo governo ou compartilham do mesmo legado cultural e histórico. É um grupo territorial de indivíduos com relações recíprocas, que servem de meios comuns para lograr fins comuns.”
Mas se de um lado a grande diversidade nos separa, por outro propicia um fenômeno muito peculiar que de certa forma nos uni, a “regionalidade”. Este fator com certeza cria uma aura de identificação cultural. Essa identificação se faz notória quando vemos gaúchos cultivando hábito de tomar chimarrão e comer churrasco, do carioca com o samba, do carnaval na Bahia, do pão de queijo com o mineiro e de uma forma geral o futebol com o brasileiro...
Mas será que estes fatores regionais culturais são suficientes para impulsionar pessoas que moram na mesma cidade, mesmo bairro, na mesma rua a se organizarem e articularem em prol da mesma causa? Será que há a mesma causa? Mesmos interesses?
Ao mesmo tempo em que podemos afirmar que sim para essas interrogações, também podemos verificar durante a nossa história, a existência de capítulos que apontaram muitos denominadores comuns, mas, que os restos e as diferenças muitas vezes impediram a realização de formação de uma comunidade engajada e participante e quando esses obstáculos foram superados as mesmas foram marginalizadas, consideradas subversivas, uma ameaça ao status quo, sendo dizimadas em nome da “ordem e do progresso”.
A primeira grande dificuldade de formação de comunidades segundo o significado proposto neste texto, a partir da organização feita de baixo pra cima, por mais difícil que possa parecer foi no processo de escravidão negra no Brasil, a final de contas tinham muito em comum para se unirem e fazer valer sua voz (no caso, a busca da liberdade). A escravidão negra no Brasil tem seu início no século XVI por volta de 1570 ocasionando posteriormente o “fim” da escravidão indígena, por os fidalgos portugueses acreditarem que os africanos eram mais aptos para trabalharem na plantação e extração de cana-de-açúcar(produto gerador de maior riqueza da época). Com isso no século XVIII a população negra no Brasil já era uma maioria bem significativa. E a pergunta que se faz é: Por que não se rebelaram? Por que não se organizaram e lutaram contra o fim da escravidão?
A resposta pode vir de diversas formas. Se partirmos de algumas colocações étnicas, geográficas e sociais, perceberemos que os africanos vinham de suas terras muitas vezes separados de seus povos, misturado com outros rivais ou de domínio de idiomas ou dialetos diferentes (leve-se em consideração que a África é um continente que fala mais de 56 mil línguas e dialetos diferentes), que estavam longe de casa, atravessaram um oceano e não tinham a menor idéia de onde estavam. - Fugir para onde? E que muitos deles com o passar do século nasceram e cresceram na condição de escravo sem saber o significado prático da palavra “liberdade”.
Apesar de todos estes fatores que impediam a reação à escravidão e de sempre ter sido mantido sob controle pelos portugueses, as fugas ocorriam, e dessas fugas surgiram o nosso objeto de análise, a comunidade ( neste caso específico, os quilombos), onde viviam sobre muitos aspectos que classificamos como meios e fins comuns. A liberdade, o refúgio, as relações comerciais autônomas, as produções, suas articulações de defesa, enfim, a participação de todos do seu núcleo de forma ativa que os levava a uma melhor condição de vida que não fosse à escravidão.
Mas essa organização social (comunidade) era fora dos padrões do poder vigente, sendo assim, foi considerada subversiva, uma ameaça ao status quo. Logo marginalizada. E todos os esforços foram feitos até que esta “ameaça” fosse aniquilada. Sua existência como comunidade só era aceita se fosse dentro das senzalas, ou seja, uma comunidade submissa, oprimida e organizada se cima para baixo.
Se avançarmos um pouco mais no tempo, veremos que no final do século XIX, já a barra das saias da Lei Áurea na região do Nordeste, houve outro suspiro de formação de uma comunidade. Refiro-me a cidade de Canudos.
Região dominada por fazendeiros (coronéis), uma minoria privilegiada que vivia à custa da exploração do trabalho da miserável população sertaneja. A insatisfação com o destino que suas vidas se encaminhavam e com os rumos que a proclamação da república traçava, abriu a lacuna para serem impulsionados e organizados por uma liderança religiosa, a se rebelaram e migrarem de suas cidades a caminho Canudos, como se ela fosse a São Paulo da época, (no sentido que os sertanejos depositaram a esperança de uma vida melhor na cidade de Canudos) da qual não precisavam jogar as regras da república pagando impostos injustos e possibilitando a construção de uma vida que não fosse apenas sucumbir às mazelas.
Obviamente, mais uma vez, as forças do governo simplesmente se fizeram valer. Apesar da longa resistência, acabaram por riscar Canudos do mapa, proporcionando uma das maiores carnificinas (25 mil mortos) de nossa história e pendurando a cabeça de seus líderes para que fique de lição que não é cabível neste país a formação de qualquer tipo de organização popular. A corrente filosófica do Positivismo de August Comte influenciava fortemente nossa política neste período, que as transformações e soluções dos problemas deveriam ser confiadas cegamente às forças do Estado, que apenas por si e pela ciência a sociedade evoluiria em todos os aspectos. Este modo de enxergar a realidade era tido como verdade absoluta.
No século XX, o país, ao caminhar para sua revolução industrial, revolução que transformou as estruturas da sociedade por um lado e de outro manteve as condições de organização social nos mesmos propósitos. O poder continuou privilegiando uma minoria. E não foi diferente o processo de formação dos grandes centros urbanos.
Os grupos que surgiram na década de 1920 conhecidos como anarco-sindicalistas e a formação do PCB, propunham que uma revolução fosse feita no Brasil visando uma sociedade mais justa que não fosse conduzida por oligarquias, mas conduzidas pelos trabalhadores. O resultado não passou de algumas conquistas trabalhistas que muitas vezes não passaram de promessas, logo foram desmobilizados e marginalizados ( ser chamado de anarquista era uma ofensa neste período levando o indivíduo ao risco de prisão caso fosse provado que ele realmente o fosse).
Na década de 1960, diversos grupos politizados, com relações recíprocas, com meios e fins comuns, incomodavam o a aristocracia civil e militar na exigência de reformas sociais e questionando o governo. O preço pago foi à desarticulação e perseguição dos movimentos sociais durante 20 anos. E o maior êxito deste governo foi a trabalho incessante em cima de um projeto de educação que nos deixou seqüelas até hoje, onde a escola se afastou totalmente da responsabilidade de criar um ambiente de reflexão, de formação de seres questionadores. Este talvez seja o que mais tenha nos causado danos. Ao fragilizar a nossa capacidade de questionar, ao mesmo tempo ampliou o poder de dominação do status quo sobre as massas, que hoje utiliza os mais modernos meios de comunicação para alienar e criar barreiras ainda maiores para a organização da sociedade por conta dela própria. Reforça-se ainda mais a marginalização dos movimentos sociais por conta da própria sociedade em todos os seus níveis. Dificilmente vemos por ai uma simpatia popular em relação a greves, manifestações sociais... O que reproduzimos nada mais é que o discurso televisivo, “... que são uns desordeiros, deveriam trabalhar ao invés de ficarem fazendo arruaça por ai.”
Se no período da ditadura ou na redemocratização o Estado utilizou todos os artifícios, seja da desestruturação do ensino ou da alienação por meios de comunicação, o século XXI iniciou com mais um grande obstáculo, um filho do século XX conhecido como Neoliberalismo. Com uma política que visa às relações de mercado a cima do Estado, tende a não enxergar mais o cidadão e sim o consumidor, se existem comunidades, são comunidades de consumidores. Grupos que tem determinadas “necessidades” em comum, para que consumam em comum e alimentem o mercado. Este grupo que consome em comum é visivelmente encontrado em “tribos” formadas partindo de estereótipos e arquétipos, seja na construção de ídolos em comum, marcas, estilos musicais, condições de gênero, faixa etária, esportes... Nascem elos que ultrapassam a perspectiva de regionalidade (cultura regional), mas ao mesmo tempo é superada também movimenta um mercado específico para suas especificidades. Tudo passa a impulsionar o mercado, tudo vira produto. A frase de Marx se faz mais uma vez atual: “Para entendermos a nossa sociedade, baste entender o mercado que nos rege”. E até quando o capitalismo demonstra crise e surgem símbolos contra a si próprios, o sistema cria produtos para estes contrários consumirem e os que se reconhecem contra este modelo acabam alimentando e fortalecendo a perpetuação desta condição. Este modelo de comunidade que o neoliberalismo cria tem para nós um sentido de contramão-comunitária. A nossa eterna insatisfação e nosso eterno desejo de consumir determinados produtos que nos faça sentir melhor ou pertencente a algum grupo que parte sempre da satisfação individual é resultado da incapacidade de analisar e refletir sobre essas condições pré-concebidas, e pior, muitas vezes é percebida mas, não é combatida, pois o indivíduo se adaptou a uma condição de mundo que respira essas relações desde seu nascimento causando neste mesmo indivíduo a construção e consolidação de uma cultura.
A criminalidade organizada se aproveita deste processo de fragilização social na qual a sociedade se encontra, apontando caminhos que desvirtuam e ao mesmo tempo que organizam o meio, mas a sua maneira. O crime se organiza onde o descaso impera e onde a sociedade é desorganizada.
Para consolidar ainda mais a comunidade de mercado, a publicidade vem investindo em Marketing Cultural, as empresas patrocinam eventos esportivos, teatrais, filantrópicos... Expõe suas marcas em atividades culturais, sobre referências vitoriosas vestindo a máscara de incentivo a cultura para fortalecer seu nome no mercado e criar uma relação de fidelidade com o consumidor.
Com esta análise, se não conseguimos detectar todos os fatores que impedem a formação de uma comunidade participativa ou que contribuem para desarticulá-la, conseguimos determinar pontos de extrema relevância, sejam esses fatores históricos, culturais, sociais, políticos e econômicos. E que apesar de toda carga histórica um grande promovedor das maleficências da sociedade contemporânea são os que lucram com esta dinâmica de mercado, funcionando como reforçadores dessa condição a todo o tempo. Se o caminho de adaptação ao mundo em que vivemos se apresenta como prejudicial, alienante e a controlados político, torna-se evidente a necessidade de busca de outros rumos. Um rumo na contra mão desta proposta, a busca da inserção ao mundo. Uma possibilidade que o coloca a condição de analisar a sua realidade e não simplesmente aceitá-la e sim transformá-la, situação totalmente oposta à adaptação que nos submete a condições pré-concebidas.
O que se apresenta bem claramente é que a sociedade desarticulada, irreflexiva e não participativa, vem do projeto de consolidação de uma cultura de banalização de valores comunitários substituindo-os por valores do capital. A necessidade de um caminho inverso a este implantado, se apresenta como necessária para a formação de comunidades atuantes, que não se preocupe apenas com as especificidades particulares de cada individuo, mas que proporcione melhorias em suas vidas e funcione como um grito de aviso indicando que estamos aqui e não existimos apenas no dia das eleições.
O processo de transição da desconstrução de uma cultura e de formação e consolidação de outra que respeite as condições regionais e culturais de cada espaço é um caminho muito longo a ser percorrido e necessita de paciência e muito trabalho das próprias pessoas de dentro das comunidades. Como vimos no princípio do texto, em muitos momentos de nossa história tivemos formações de comunidades atuantes organizadas de baixo para cima. Mas que dentro delas, houve lideranças que contribuíram para a articulação das comunidades. Figuras das quais me refiro como vanguardas. Aponto como referenciais históricos, Zumbi em Palmares e Antônio Conselheiro em Canudos.
O surgimento de vanguardas de dentro das próprias comunidades, que tenha facilidade de comunicação com todos e esteja engajada na luta pela melhora de sua realidade, que vise à construção de um ambiente democrático participativo onde todos possam opinar e decidir o que é melhor para todos ( não instituir um poder na comunidade).
O fato de haver a necessidade de formação de vanguardas nas comunidades brasileiras não significa que afirmo a inexistência delas. Muito pelo contrário, em muitas comunidades é presente a preocupação com a melhoria de condições da população que convive sob mesmo espaço ( comunidades atuantes). A prova maior são as associações de mutuários, associações de multirantes, os institutos de arte e cultura formada em comunidades reforçam a recíproca de que desarticulação sociocomunitária e desinteresse de alterar o tal, não pode ser tomada como fenômeno generalizado. Se a descrença pela iniciativa governamental levou a sociedade ao desinteresse e banalização da política no Brasil, nas comunidades onde a cooperação dá certo, provaram que esta mesma descrença pôde ser utilizada para que as próprias comunidades se mobilizarem.
O acesso a uma proposta de educação que atinja os objetivos dos quais liberte a sociedade de preconceitos, marginalizações desta condição do não refletir e não querer pensar sobre o que lhe é imposto pelo próprio sistema, que leve a percepção de que a entidade pública pode ter qualidade porque ela própria é o público presente, de que depende dela exigir o melhor destes órgãos. Que consigam perceber que precisam exigir e construir um ambiente escolar que busque humanizar, intelectualizar e profissionalizar. Infelizmente, a realidade que vivemos ainda é vista pelo status quo como munição ou ferramenta para se manter uma estrutura que dá lucro e que ao mesmo tempo escraviza.
Os rumos que traçamos nossa história devem ser alterados. Torna-se no mínimo relevante, a discussão que busque apontar para a formação de culturas comunitárias, que contribuam para que se tire as vendas dos olhos do povo que o passado colocou e que o presente tratou de mantê-las muito bem amarradas.









Bibliografia
WWW.ibge.gov.br
www.paulofreire.ufpb.com.br
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