domingo, 14 de julho de 2013

Um ensaio sobre os protestos de junho de 2013.






Apesar de a história estar em constante construção, e de que todo indivíduo é um agente histórico, não é sempre que nos vemos presente diante de um fato envolvendo participação popular em grandes proporções, nas quais possivelmente as crianças estarão vendo em livros daqui a alguns anos. Refiro-me as grandes manifestações populares ocorridas neste mês de Junho de 2013.
Ousar escrever sobre estas grandiosas passeatas que mobilizou centenas de milhares de pessoas em todo o país me faz lembrar o Prefácio da obra Era dos Extremos (Hobsbawn, 1994), em que o autor aponta para a dificuldade ao escrever sobre o período em que vive, por carregarmos em nossa escrita, todo o sentimento e preconceito na análise dos fatos de forma  veemente por conta dos acontecimentos interferirem diretamente em nosso cotidiano.
Neste texto, não pretendo fazer uma análise aprofundada, tão pouco apontar causas e soluções para todos os problemas reivindicados nas ruas do Brasil. Mas traçar um panorama da sequência dos fatos e fazer algumas observações, das quais muitas vezes a velocidade da informação e as novidades diárias sobre o assunto não nos permite dar conta de compreender ao certo o que está acontecendo no País.
O povo havia desacostumado de ver manifestações pelas ruas. Não que elas tenham parado, mas a muito não eram vistas com bons olhos. Perturbadora da paz, atrapalhar o trânsito, impedir a chegada de doentes aos hospitais, trabalhadores de voltar para casa, prejudicar transações comerciais. Inclusive foram argumentos usados pela própria imprensa. Este tipo de posição observada costuma ser muito comum por pessoas que tem a normalidade de sua rotina interrompida por manifestações populares. Porém neste mês de Junho ocorreu algo novo na história do Brasil.
Devido ao anúncio do aumento das tarifas dos ônibus da cidade de São Paulo para R$ 3,20, integrantes do movimento Passe Livre organizaram manifestações nas ruas do centro paulistano exigindo a redução da tarifa. As primeiras passeatas conseguiram juntar aproximadamente de 3 a 5 mil pessoas (segundo estimativas da polícia militar anunciada pela mídia). A composição dessas passeatas foi bem heterogênea. Haviam militantes de partidos de esquerda, grupos anarquistas, estudantes universitários, pessoas que simplesmente apoiavam a causa, jovens, adultos, idosos, partidos de esquerda.  A tentativa de desobstrução das vias resultaram em conflito entre polícia militar e manifestantes. Os meios de comunicação (rádio, tv e jornal), com raras exceções fizeram uma leitura bem tradicional dos fatos. Apresentaram as manifestações como ilegítimas por conta do rastro de destruição deixado na Avenida Paulista. O próprio comentarista político Arnaldo Jabor chegou a chamar os manifestantes de “pequenos burgueses, rebeldes sem causa e vândalos”, declaração facilmente encontrada nas redes sociais. O advogado Eduardo Muylaert, comentarista da TV Cultura, chegou a sugerir que as manifestações fossem feitas no sambódromo, “assim não atrapalhariam ninguém”.
O governo até então pouco se pronunciava ou intransigentemente negava qualquer possibilidade de negociação ou redução das tarifas. Já o movimento convocador das manifestações negava sair das ruas enquanto o aumento não fosse revogado. Isso deixava a situação muito complicada. Se o governo fosse punir, puniria quem? O Movimento Passe Livre se intitula horizontal, isto é, sem líderes (o que também foi alvo de muitas críticas na mídia). Enquanto isso o movimento ganhava força.
Redes sociais! Enquanto a mídia apresentava uma informação um tanto conservadora, na internet circulavam outras versões dos fatos. As causas dos movimentos, a truculência da polícia, o malefício provocado pelo aumento das tarifas, convocação do povo para as ruas, outras indignações sendo expostas. De repente o facebook se tornou uma imensa Ágora cibernética.
O dia 13 de Junho de 2013 foi o dia da “D”. Terceiro dia das manifestações, por volta das 17 horas, os manifestantes se organizavam em frente ao Teatro Municipal na capital paulista. Aproximadamente 15 mil pessoas (segundo estatísticas da Polícia Militar) saíram em passeata no intuito de chegar a Avenida Paulista. No intuito de impedir a passagem e dispersar a grande concentração de pessoas nas ruas, a Tropa de Choque se fez presente disparando tiros com bala de borracha, bombas de efeito moral, spray de pimenta e bombas de gás lacrimogênio. Nesta intervenção os jornalistas presentes flagraram a truculência da polícia, cometendo excessos atingindo manifestantes pacíficos, fotógrafos e jornalistas que ali estavam presentes. A repórter Giuliana Vallone da TV Folha foi uma das profissionais da imprensa que fazia a cobertura, foi gravemente ferida no olho por um disparo de bala de borracha.
Por conta da violência sofrida não mais apenas aos manifestantes, e agora aos jornalistas, no dia 14 de Junho de 2013 as capas de jornais, noticiários da TV e rádio denunciavam todas as atrocidades praticadas pela Polícia Militar do fatídico dia 13 de Junho, dezenas de pessoas presas, outras dezenas hospitalizadas. O comentarista do Jornal da Cultura Carlos Novaes apontou na edição deste mesmo dia que “a polícia não cometeu excessos, ela é treinada para agir exatamente assim, a periferia já está acostumada com este tipo de intervenção”. Definitivamente, a imprensa mudou de posição diante dos fatos. De acusadores de “destruidores da ordem” a mídia começou a “ver” as manifestações de lutas populares legitimamente necessárias, porém, sem vandalismo. Expressão que anda sendo muito utilizada até o presente momento. Teria a mídia realmente se sensibilizado? Há quem defenda a tese de que estão querendo se aproveitar do movimento popular para apoiar uma direita historicamente reacionária neste país, já que o atual governo federal é entendido como esquerda.
Nesta altura as manifestações já pipocavam em muitas capitais e algumas cidades do interior do país. Porto Alegre, Belém do Pará, Belo Horizonte, Salvador, Recife, dentre outras. Algumas delas iniciaram antes de São Paulo. Todas contra o aumento das tarifas dos transporte em suas  respectivas cidades. Em suas reivindicações incluíam desde o fim da corrupção aos altos gastos com a construção de estádios para a Copa do Mundo que será realizada no Brasil em 2014.
Na segunda, 17 de Junho de 2013, o que já era esperado aconteceu. A revolta diante do ocorrido até então fez com que milhares de pessoas saíssem as ruas e apoiar o movimento, que até então parecia ser apenas por vinte centavos revelou-se uma enorme insatisfação não apenas com a violência da polícia, mas por tudo que parece estar errado neste país. O número exato de pessoas que estiveram nas ruas é difícil de afirmar. A imprensa afirma que só em São Paulo cerca de 150 mil pessoas estiveram nas ruas este dia. Fotos tiradas de cima da Avenida Paulista mostravam-na tão cheia quanto a Parada Gay que costuma ter em média 1,5 milhão de pessoas, fora outro contingente tão grande quanto caminhando pela Zona Sul de São Paulo, sem contar as outras cidades pelo Brasil a fora, muitas delas apresentando seus milhares manifestantes.
Neste dia, praticamente nenhuma ocorrência de violência por parte de manifestantes nem por policiais foi registrado. A PM foi orientada pelo governo do estado para não intervir, o que pareceu fortalecer ainda mais o movimento. O contrário ocorreu no Rio de Janeiro (300 mil), muito tumulto, muito confronto, prisões foram observadas. Muitos policiais e manifestantes foram feridos. Até tiro com fuzis foi possível verificar nos telejornais. Neste dia também, foi possível observar a repulsa dos manifestantes pelos partidos políticos que apoiavam o movimento, caracterizando desde então como uma manifestação sem partidos, o que provocou uma grande inquietação na mídia e nas redes sociais levantando questionamentos,  a final de contas, as manifestações eram apartidárias, ou anti-partidárias? Partidos de esquerda envolvidos com lutas sociais a bastante tempo (PSOL, PSTU, PCO, PT, PCB) tiveram seus egos tocados pela posição dos manifestantes.     
Houve outras grandes manifestações durante toda a semana, até que alguns prefeitos de diversas cidades do Brasil anunciaram a redução ou revogação dos aumentos das tarifas.  E enfim, o que parecia impossível se tornou evidente. Na terça feira, 18 de Junho o prefeito e governador de São Paulo Fernando Haddad e Geraldo Alckmin convocaram uma coletiva anunciando a revogação do aumento das passagens de ônibus, trens e metrôs.  
No mesmo dia o movimento Passe Livre convocou a população para a Avenida Paulista na sexta feira, 21 de Junho de 2013, em comemoração a conquista da revogação do aumento das tarifas. Devido a extensão de pautas apontadas por manifestantes em todos os dias de manifestações e do gritos de “NÃ É SÓ POR 0,20 CENTAVOS”, a grande dúvida era, será que as manifestações iriam parar? Não foi o que aconteceu. As manifestações continuaram por boa parte do Brasil, se espalhando por cidades do interior e periferias.
As cidades que sediavam os jogos da Copa das Confederações de Futebol também foram foco dos manifestantes durante todo o período do torneio (coincidindo com o mês de junho). A imprensa noticiou muitos saques em lojas, destruição de imóveis de instituições provadas, carros da imprensa incendiados (como o da Record em São Paulo e SBT, um ônibus da FIFA em Salvador), concessionárias de automóveis em Belo Horizonte e Rio de Janeiro foram invadidas e danificadas. Em Porto Alegre diversos comércios foram arrombados e saqueados. Nestes momentos era difícil detectar o que era manifestação ou crime de fato. 
Neste mesmo dia 21 de Junho, os noticiários mostravam uma quase invasão do Congresso Nacional por milhares de manifestantes em Brasília. Alguns deles atiravam objetos e um coquetel Molotov chegou a principiar um pequeno foco de incêndio. Dias antes (17 de junho), o mesmo Congresso Nacional teve seu teto tomado por manifestantes dando gritos de ordem e cantando o hino nacional e prometendo voltar em dias posteriores.
A força que as manifestações ganharam e o teor de violência explicitada em muitos momentos pressionou a Presidente da República Dilma Roussef a se manifestar fazendo um pronunciamento em cadeia nacional via rádio e televisão se posicionando diante destes dias que foram “quentes”. Ela se colocou sensível aos movimentos dizendo que não poderia se fechar “as fozes que vem das ruas”, pelo menos as de caráter pacífico. Porém, manifestou receio em o país sair dos rumos da democracia por conta da “violência” caracterizados em muitas manifestações. Assumiu compromissos dos quais apontava as seguintes metas:
1º Elaboração de um plano de mobilidade urbana que privilegie o transporte coletivo.
2º 100% dos royalties do Pré-Sal para a educação.
3º Trazer milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS.
4º Receber líderes de associações populares e sindicais para discutir suas pautas e reinvindicações.
5º Reforma política ampla e profunda.
Os dias seguintes foram de grande movimentação no congresso por parte de deputados e senadores. Em um mesmo foram votados e aprovados projetos de leis que durante muitos anos estavam longe de discussão na câmara:
- Derrubada do voto secreto na cassação de mandatos.
- Aprovação da Emenda Constitucional tornando corrupção como crime hediondo.
- Aprova 100% dos Royalties do petróleo para a saúde e educação.
- Revogados o 14º e 15º salário dos congressistas.
Até o Projeto de Emenda Constitucional 37 (PEC 37), que tiraria o poder do judiciário o direito da investigação dos crimes foi revogado, com extrema maioria de votos.
Ainda sim, as manifestações continuam. Não a mesmo vigor, não com a mesma adesão. Porém se descentralizaram ainda mais para as periferias, interiores, categorias trabalhistas como: motoristas de ônibus, médicos, caminhoneiros, sindicalistas. Estradas interrompidas, protestos contra a o aumento e existência dos pedágios.
Diante de tantos fatos recentes, vários pontos se fazem necessário refletir, para começar, desde o Impeachment do ex- presidente Fernando Collor em 1992, não temos manifestações populares de tamanhas proporções, ou seja, em uma história recente do Brasil havíamos perdido este poder de comoção política pelo povo, como se não houvesse nada mais que melhorar no Brasil, pelo menos que dependesse de nossas ações. Nossa participação se restringiu ao voto.
A repercussão das manifestações do dia 13 de Junho em São Paulo devido a maneira violenta e arbitrária da ação da polícia contagiou várias capitais e cidades do interior para também sair as ruas. E então o barulho todo deixou de ser “só por vinte centavos”, como os próprios manifestantes diziam, e passou a apontar a insatisfação com a descrença do povo em relação aos políticos pelas múltiplas denúncias de corrupção diariamente noticiadas pela mídia, a impunidade, a má qualidade dos serviços públicos (em especial saúde, educação, segurança e transporte), propostas de lei como a PEC 37 e a aprovação da suposta Cura Gay pela comissão de Direitos Humanos, presidida pelo Dep. Marcos Feliciano (PSDC), a incredibilidade nas grandes emissoras de TV (em especial Rede Globo), a revolta com os bilionários gastos da reforma dos estádios para a Copa do Mundo de 2014 e outras reivindicações locais em várias cidades do Brasil.     
Os meios de comunicação não oficiais como as redes sociais se mostraram democráticas o suficiente para todos, inclusive os que não foram às ruas, como os que eram contra elas de se manifestar, mas, grandes orquestradores das manifestações, divulgando datas, horários e locais.
Creio que de tudo observado até aqui, é importante destacar que as manifestações nas ruas tinham em sua maioria, jovens de classe média. Porém, foi possível observar uma adesão popularque estiveram presentes nas manifestações muito grande, tanto na TV quanto nas redes sociais. E ao observarem o governo ceder em relação ao aumento das tarifas de ônibus “algo impossível, até então, da Câmara aprovar leis diretamente de interesse popular e a Presidente da República se manifestar prometendo ouvir as “vozes que vem das ruas”, toda ação popular aplicada apresentou um incrível poder pedagógico. Primeiramente por mostrar ao povo que muitas das mudanças esperadas dependem de nossas cobranças e para isso acontecer apenas à união é o caminho. Segundo, os protestos romperam com a mentalidade do próprio povo em muitos momentos conservadora ao observar manifestações populares como “perturbadoras da ordem”. Terceiro, os representantes da República perceberam que o não cumprimento de seu dever pode sim provocar revoltas e por conta disso ter seus privilégios serem postos em risco. Quarto, pela primeira vez os alunos de ensino básico se viram dentro de algo grandioso acontecendo em seu país, o que só era possível verificar nos livros, prato cheio para professores trazerem discussões politizadoras para as salas de aula. Enfim, se até hoje o povo brasileiro era visto como um “burro” amarrado a uma cadeira de plástico, neste mês de junho de 2013 tive a sensação que o “burro” percebeu que a cadeira era de plástico. A questão agora é se essa percepção será momentânea ou não.