Apesar de a história estar em
constante construção, e de que todo indivíduo é um agente histórico, não é
sempre que nos vemos presente diante de um fato envolvendo participação popular
em grandes proporções, nas quais possivelmente as crianças estarão vendo em
livros daqui a alguns anos. Refiro-me as grandes manifestações populares
ocorridas neste mês de Junho de 2013.
Ousar escrever sobre estas
grandiosas passeatas que mobilizou centenas de milhares de pessoas em todo o
país me faz lembrar o Prefácio da obra Era dos Extremos (Hobsbawn, 1994), em
que o autor aponta para a dificuldade ao escrever sobre o período em que vive,
por carregarmos em nossa escrita, todo o sentimento e preconceito na análise dos
fatos de forma veemente por conta dos
acontecimentos interferirem diretamente em nosso cotidiano.
Neste texto, não pretendo fazer
uma análise aprofundada, tão pouco apontar causas e soluções para todos os
problemas reivindicados nas ruas do Brasil. Mas traçar um panorama da sequência
dos fatos e fazer algumas observações, das quais muitas vezes a velocidade da
informação e as novidades diárias sobre o assunto não nos permite dar conta de
compreender ao certo o que está acontecendo no País.
O povo havia desacostumado de ver
manifestações pelas ruas. Não que elas tenham parado, mas a muito não eram
vistas com bons olhos. Perturbadora da paz, atrapalhar o trânsito, impedir a
chegada de doentes aos hospitais, trabalhadores de voltar para casa, prejudicar
transações comerciais. Inclusive foram argumentos usados pela própria imprensa.
Este tipo de posição observada costuma ser muito comum por pessoas que tem a
normalidade de sua rotina interrompida por manifestações populares. Porém neste
mês de Junho ocorreu algo novo na história do Brasil.
Devido ao anúncio do aumento das
tarifas dos ônibus da cidade de São Paulo para R$ 3,20, integrantes do
movimento Passe Livre organizaram manifestações nas ruas do centro paulistano
exigindo a redução da tarifa. As primeiras passeatas conseguiram juntar
aproximadamente de 3 a 5 mil pessoas (segundo estimativas da polícia militar
anunciada pela mídia). A composição dessas passeatas foi bem heterogênea.
Haviam militantes de partidos de esquerda, grupos anarquistas, estudantes
universitários, pessoas que simplesmente apoiavam a causa, jovens, adultos,
idosos, partidos de esquerda. A
tentativa de desobstrução das vias resultaram em conflito entre polícia militar
e manifestantes. Os meios de comunicação (rádio, tv e jornal), com raras
exceções fizeram uma leitura bem tradicional dos fatos. Apresentaram as
manifestações como ilegítimas por conta do rastro de destruição deixado na
Avenida Paulista. O próprio comentarista político Arnaldo Jabor chegou a chamar
os manifestantes de “pequenos burgueses, rebeldes sem causa e vândalos”,
declaração facilmente encontrada nas redes sociais. O advogado Eduardo
Muylaert, comentarista da TV Cultura, chegou a sugerir que as manifestações
fossem feitas no sambódromo, “assim não atrapalhariam ninguém”.
O governo até então pouco se
pronunciava ou intransigentemente negava qualquer possibilidade de negociação
ou redução das tarifas. Já o movimento convocador das manifestações negava sair
das ruas enquanto o aumento não fosse revogado. Isso deixava a situação muito
complicada. Se o governo fosse punir, puniria quem? O Movimento Passe Livre se
intitula horizontal, isto é, sem líderes (o que também foi alvo de muitas
críticas na mídia). Enquanto isso o movimento ganhava força.
Redes sociais! Enquanto a mídia
apresentava uma informação um tanto conservadora, na internet circulavam outras
versões dos fatos. As causas dos movimentos, a truculência da polícia, o
malefício provocado pelo aumento das tarifas, convocação do povo para as ruas,
outras indignações sendo expostas. De repente o facebook se tornou uma imensa
Ágora cibernética.
O dia 13 de Junho de 2013 foi o
dia da “D”. Terceiro dia das manifestações, por volta das 17 horas, os
manifestantes se organizavam em frente ao Teatro Municipal na capital paulista.
Aproximadamente 15 mil pessoas (segundo estatísticas da Polícia Militar) saíram
em passeata no intuito de chegar a Avenida Paulista. No intuito de impedir a
passagem e dispersar a grande concentração de pessoas nas ruas, a Tropa de
Choque se fez presente disparando tiros com bala de borracha, bombas de efeito
moral, spray de pimenta e bombas de gás lacrimogênio. Nesta intervenção os
jornalistas presentes flagraram a truculência da polícia, cometendo excessos
atingindo manifestantes pacíficos, fotógrafos e jornalistas que ali estavam
presentes. A repórter Giuliana Vallone da TV Folha foi uma das profissionais da
imprensa que fazia a cobertura, foi gravemente ferida no olho por um disparo de
bala de borracha.
Por conta da violência sofrida
não mais apenas aos manifestantes, e agora aos jornalistas, no dia 14 de Junho
de 2013 as capas de jornais, noticiários da TV e rádio denunciavam todas as
atrocidades praticadas pela Polícia Militar do fatídico dia 13 de Junho,
dezenas de pessoas presas, outras dezenas hospitalizadas. O comentarista do
Jornal da Cultura Carlos Novaes apontou na edição deste mesmo dia que “a
polícia não cometeu excessos, ela é treinada para agir exatamente assim, a
periferia já está acostumada com este tipo de intervenção”. Definitivamente, a
imprensa mudou de posição diante dos fatos. De acusadores de “destruidores da
ordem” a mídia começou a “ver” as manifestações de lutas populares
legitimamente necessárias, porém, sem vandalismo. Expressão que anda sendo
muito utilizada até o presente momento. Teria a mídia realmente se
sensibilizado? Há quem defenda a tese de que estão querendo se aproveitar do
movimento popular para apoiar uma direita historicamente reacionária neste país,
já que o atual governo federal é entendido como esquerda.
Nesta altura as manifestações já
pipocavam em muitas capitais e algumas cidades do interior do país. Porto
Alegre, Belém do Pará, Belo Horizonte, Salvador, Recife, dentre outras. Algumas
delas iniciaram antes de São Paulo. Todas contra o aumento das tarifas dos
transporte em suas respectivas cidades.
Em suas reivindicações incluíam desde o fim da corrupção aos altos gastos com a
construção de estádios para a Copa do Mundo que será realizada no Brasil em
2014.
Na segunda, 17 de Junho de 2013,
o que já era esperado aconteceu. A revolta diante do ocorrido até então fez com
que milhares de pessoas saíssem as ruas e apoiar o movimento, que até então
parecia ser apenas por vinte centavos revelou-se uma enorme insatisfação não
apenas com a violência da polícia, mas por tudo que parece estar errado neste
país. O número exato de pessoas que estiveram nas ruas é difícil de afirmar. A
imprensa afirma que só em São Paulo cerca de 150 mil pessoas estiveram nas ruas
este dia. Fotos tiradas de cima da Avenida Paulista mostravam-na tão cheia
quanto a Parada Gay que costuma ter em média 1,5 milhão de pessoas, fora outro
contingente tão grande quanto caminhando pela Zona Sul de São Paulo, sem contar
as outras cidades pelo Brasil a fora, muitas delas apresentando seus milhares
manifestantes.
Neste dia, praticamente nenhuma
ocorrência de violência por parte de manifestantes nem por policiais foi
registrado. A PM foi orientada pelo governo do estado para não intervir, o que
pareceu fortalecer ainda mais o movimento. O contrário ocorreu no Rio de
Janeiro (300 mil), muito tumulto, muito confronto, prisões foram observadas.
Muitos policiais e manifestantes foram feridos. Até tiro com fuzis foi possível
verificar nos telejornais. Neste dia também, foi possível observar a repulsa
dos manifestantes pelos partidos políticos que apoiavam o movimento,
caracterizando desde então como uma manifestação sem partidos, o que provocou
uma grande inquietação na mídia e nas redes sociais levantando questionamentos,
a final de contas, as manifestações eram
apartidárias, ou anti-partidárias? Partidos de esquerda envolvidos com lutas
sociais a bastante tempo (PSOL, PSTU, PCO, PT, PCB) tiveram seus egos tocados
pela posição dos manifestantes.
Houve outras grandes
manifestações durante toda a semana, até que alguns prefeitos de diversas
cidades do Brasil anunciaram a redução ou revogação dos aumentos das tarifas. E enfim, o que parecia impossível se tornou
evidente. Na terça feira, 18 de Junho o prefeito e governador de São Paulo Fernando
Haddad e Geraldo Alckmin convocaram uma coletiva anunciando a revogação do
aumento das passagens de ônibus, trens e metrôs.
No mesmo dia o movimento Passe Livre
convocou a população para a Avenida Paulista na sexta feira, 21 de Junho de
2013, em comemoração a conquista da revogação do aumento das tarifas. Devido a
extensão de pautas apontadas por manifestantes em todos os dias de
manifestações e do gritos de “NÃ É SÓ POR 0,20 CENTAVOS”, a grande dúvida era,
será que as manifestações iriam parar? Não foi o que aconteceu. As
manifestações continuaram por boa parte do Brasil, se espalhando por cidades do
interior e periferias.
As cidades que sediavam os jogos
da Copa das Confederações de Futebol também foram foco dos manifestantes
durante todo o período do torneio (coincidindo com o mês de junho). A imprensa
noticiou muitos saques em lojas, destruição de imóveis de instituições
provadas, carros da imprensa incendiados (como o da Record em São Paulo e SBT,
um ônibus da FIFA em Salvador), concessionárias de automóveis em Belo Horizonte
e Rio de Janeiro foram invadidas e danificadas. Em Porto Alegre diversos
comércios foram arrombados e saqueados. Nestes momentos era difícil detectar o
que era manifestação ou crime de fato.
Neste mesmo dia 21 de Junho, os
noticiários mostravam uma quase invasão do Congresso Nacional por milhares de
manifestantes em Brasília. Alguns deles atiravam objetos e um coquetel Molotov
chegou a principiar um pequeno foco de incêndio. Dias antes (17 de junho), o
mesmo Congresso Nacional teve seu teto tomado por manifestantes dando gritos de
ordem e cantando o hino nacional e prometendo voltar em dias posteriores.
A força que as manifestações
ganharam e o teor de violência explicitada em muitos momentos pressionou a
Presidente da República Dilma Roussef a se manifestar fazendo um pronunciamento
em cadeia nacional via rádio e televisão se posicionando diante destes dias que
foram “quentes”. Ela se colocou sensível aos movimentos dizendo que não poderia
se fechar “as fozes que vem das ruas”, pelo menos as de caráter pacífico.
Porém, manifestou receio em o país sair dos rumos da democracia por conta da
“violência” caracterizados em muitas manifestações. Assumiu compromissos dos
quais apontava as seguintes metas:
1º Elaboração de um plano de
mobilidade urbana que privilegie o transporte coletivo.
2º 100% dos royalties do Pré-Sal
para a educação.
3º Trazer milhares de médicos do
exterior para ampliar o atendimento do SUS.
4º Receber líderes de associações
populares e sindicais para discutir suas pautas e reinvindicações.
5º Reforma política ampla e
profunda.
Os dias seguintes foram de grande
movimentação no congresso por parte de deputados e senadores. Em um mesmo foram
votados e aprovados projetos de leis que durante muitos anos estavam longe de
discussão na câmara:
- Derrubada do voto secreto na
cassação de mandatos.
- Aprovação da Emenda
Constitucional tornando corrupção como crime hediondo.
- Aprova 100% dos Royalties do
petróleo para a saúde e educação.
- Revogados o 14º e 15º salário
dos congressistas.
Até o Projeto de Emenda
Constitucional 37 (PEC 37), que tiraria o poder do judiciário o direito da
investigação dos crimes foi revogado, com extrema maioria de votos.
Ainda sim, as manifestações
continuam. Não a mesmo vigor, não com a mesma adesão. Porém se descentralizaram
ainda mais para as periferias, interiores, categorias trabalhistas como:
motoristas de ônibus, médicos, caminhoneiros, sindicalistas. Estradas
interrompidas, protestos contra a o aumento e existência dos pedágios.
Diante de tantos fatos recentes,
vários pontos se fazem necessário refletir, para começar, desde o Impeachment
do ex- presidente Fernando Collor em 1992, não temos manifestações populares de
tamanhas proporções, ou seja, em uma história recente do Brasil havíamos
perdido este poder de comoção política pelo povo, como se não houvesse nada mais
que melhorar no Brasil, pelo menos que dependesse de nossas ações. Nossa
participação se restringiu ao voto.
A repercussão das manifestações
do dia 13 de Junho em São Paulo devido a maneira violenta e arbitrária da ação
da polícia contagiou várias capitais e cidades do interior para também sair as
ruas. E então o barulho todo deixou de ser “só por vinte centavos”, como os
próprios manifestantes diziam, e passou a apontar a insatisfação com a
descrença do povo em relação aos políticos pelas múltiplas denúncias de
corrupção diariamente noticiadas pela mídia, a impunidade, a má qualidade dos
serviços públicos (em especial saúde, educação, segurança e transporte),
propostas de lei como a PEC 37 e a aprovação da suposta Cura Gay pela comissão
de Direitos Humanos, presidida pelo Dep. Marcos Feliciano (PSDC), a
incredibilidade nas grandes emissoras de TV (em especial Rede Globo), a revolta
com os bilionários gastos da reforma dos estádios para a Copa do Mundo de 2014
e outras reivindicações locais em várias cidades do Brasil.
Os meios de comunicação não
oficiais como as redes sociais se mostraram democráticas o suficiente para
todos, inclusive os que não foram às ruas, como os que eram contra elas de se
manifestar, mas, grandes orquestradores das manifestações, divulgando datas,
horários e locais.
Creio que de tudo observado até aqui,
é importante destacar que as manifestações nas ruas tinham em sua maioria,
jovens de classe média. Porém, foi possível observar uma adesão popularque
estiveram presentes nas manifestações muito grande, tanto na TV quanto nas
redes sociais. E ao observarem o governo ceder em relação ao aumento das
tarifas de ônibus “algo impossível, até então, da Câmara aprovar leis
diretamente de interesse popular e a Presidente da República se manifestar
prometendo ouvir as “vozes que vem das ruas”, toda ação popular aplicada
apresentou um incrível poder pedagógico. Primeiramente por mostrar ao povo que
muitas das mudanças esperadas dependem de nossas cobranças e para isso
acontecer apenas à união é o caminho. Segundo, os protestos romperam com a
mentalidade do próprio povo em muitos momentos conservadora ao observar
manifestações populares como “perturbadoras da ordem”. Terceiro, os
representantes da República perceberam que o não cumprimento de seu dever pode
sim provocar revoltas e por conta disso ter seus privilégios serem postos em
risco. Quarto, pela primeira vez os alunos de ensino básico se viram dentro de
algo grandioso acontecendo em seu país, o que só era possível verificar nos
livros, prato cheio para professores trazerem discussões politizadoras para as
salas de aula. Enfim, se até hoje o povo brasileiro era visto como um “burro”
amarrado a uma cadeira de plástico, neste mês de junho de 2013 tive a sensação
que o “burro” percebeu que a cadeira era de plástico. A questão agora é se essa
percepção será momentânea ou não.