sábado, 24 de abril de 2010

Pereira Passos do Século XXI.




No mês passado o Rio de Janeiro sofreu mais uma vez com as fortes chuvas, provocando deslizamento de terra na região metropolitana da cidade. Essa tragédia deixou um saldo de mais de 200 mortos, dezenas de feridos e milhares de desabrigados. O “corriqueirismo” com a qual essas tragédias vêm ocorrendo nos impede de utilizar o termo, “fomos surpreendidos com essa catástrofe”. Apesar das grandes proporções do estrago ocorrido nesta ocasião, e pela grande repercussão na mídia em todo país e em boa parte do mundo, todos estão cansados de saber que isso é algo que vem acontecendo já a muito tempo, a única diferença é que desta vez o estrago foi bem maior que todas as outras.
O efeito desta tragédia ultrapassou qualquer dado estatístico apresentado, principalmente se somarmos ai todo o trauma dos sobreviventes que perderam a família inteira, amigos, suas casas,danos que apesar de muito esforço, nenhum sensacionalismo televisivo conseguiu transpassar em toda sua amplitude e profundidade.
Mas o pior que apesar de todos esses ocorridos, tivemos que engolir a seco a declaração do governador e prefeito do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral e Eduardo Paes e o prefeito do Município de Niterói, o senhor Jorge Roberto Silveira, declarando a imprensa “a sete ventos” que a culpa de toda desgraça ocorrida era dos próprios moradores que insistem em viver nas áreas de risco. Ou seja, culpando o pobre de ser pobre no Rio de Janeiro.
Para entendermos o quanto foi estapafúrdia esta análise, é extremamente importante olhar um pouco para o passado do Rio de Janeiro, especificamente para o final do século XIX e começo do XX e reparar o quanto foram injustas essas palavras, detectando quantos aspectos de permanências há em relação a mentalidade do governo carioca atual com o do passado.
Para trabalhar este assunto é necessário remexer em algumas feridas que apesar de parecerem cicatrizadas insistem em sangrar. A formação e o crescimento das favelas nos morros do Rio de Janeiro.
Em primeiro lugar, é importante destacar um período marcante e “heróico” de nossa história, ocorrido em 1888, a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel que decretava o fim da escravidão no Brasil (um dos últimos países do mundo a abandonar esse tipo de atividade).
Apesar de tardio, mas “muito honroso”, afinal de contas reconheceram o erro e ocasionaram "o acerto". Seria o que muitos diriam se resumissem os ocorridos, e durante muito tempo era essa versão que os livros contavam. Mas o que não importaram em se preocupar é que o simples fato de apenas abrir as portas das senzalas não seria o suficiente para dar aos ex-escravos a condição de cidadão. Que seria necessário desenvolver um plano de inclusão social garantindo emprego, moradia, alimentação, saúde... Dignidade. Mas como realizar um projeto deste cunho em uma sociedade que acreditava na inferioridade racial, num país em que ainda não era industrializado, o mercado interno ainda não era desenvolvido, que simplesmente os substituíram pela mão de obra de imigrantes europeus e que em um curto espaço de tempo lançou os negros na exclusão, marginalidade e na vadiagem compulsória?
As condições para o desenvolvimento de uma industrialização e do fortalecimento do mercado interno só aconteceu de forma enfática no começo da década de 1930 quando as tendências mundiais empurraram o Brasil a este rumo como solução para sair da dependência do café como principal agente movimentador de nossa economia. Mas o quadro que temos entre 1888-1929 é de um país agrário e ao mesmo tempo de uma capital (Rio de Janeiro), centro de toda esperança e expectativa de progresso no Brasil, o que atraía a todos os mais pobres de diversas regiões do país (ênfase a moradores da região do nordeste que viviam em condição de penumbra com a seca e dos ex-escravos das zonas cafeeiras do Vale do Paraíba e interior Paulista). Rio de Janeiro para essas pessoas significava esperança, mas a realidade encontrada foi à oposta, uma cidade saturada com o crescimento demográfico, fétida, suja, repleta de cortiços e com o centro da cidade desproporcional a importância que ela passou a ter à nível econômico sendo um dos principais pontos de importação e exportação do país.
Os cortiços, as ruelas, as mínimas condições de saneamento básico, com uma enorme população pobre, desempregada (no máximo com algum tipo de atividade informal que pouco garantia sua subsistência) foram se tornando um peso para uma cidade que precisava se modernizar e atrair investimentos para o país.
O trabalho do historiador Nicolau Sevcenko nos deixou bem claro que rumos a política do presidente Rodrigues Alves(1904-1908) e do prefeito Pereira Passos nomeado por ele, reservaram para uma “modernização a cima de tudo”. O avanço das obras que mudariam o perfil da cidade e que a transformariam numa “Paris tropical” custaria à expulsão da “escória pobre, suja e doente da cidade” deixando de denegrir a imagem da cidade.
Com suas portas arrombadas, tirados a força e logo em seguida demolindo-as no intuito de alongar avenidas trazendo o glamour europeu para a cidade e facilitar o tráfego dos produtos a serem exportados nos portos cariocas. O que restava a população carente era se refugiar nos morros ao redor da cidade e o visual das janelas de seus humildes lares visualizando a cidade do futuro e o sonho de um dia usufruírem de toda essa modernidade da qual decidiram por eles que não iriam pertencer.
Essa realidade vem sendo mantida e aprofundada de acordo com os passos dados pela política capitalista neoliberal, cada vez mais na sociedade aumentando o volume de concentração de riqueza para as minorias privilegiadas no decorrer de todo o século XX, a ponto dessa situação de pobreza e violência nos morros se consolidarem como cultura e de se tornar atração turística da cidade, “ajudando a movimentar a economia”.
De lá pra cá, de 4 em 4 anos os governos pouco tem agido para alterar os rumos desta política de descaso e de exclusão social.
Em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro a prefeitura vem sendo fiel a essa política. Não é a toa que o maior foco de mortes na última tragédia das chuvas ocorreu por lá.
O prefeito Jorge Roberto Silveira, do qual já esteve neste cargo por alguns mandatos ( 16 anos), tem feito muito pouco esforço em todo decorrer deste tempo para transformar essa realidade. Quem afirma que Niterói melhorou muito nos últimos anos provavelmente não conhece algumas regiões periféricas da cidade como: bairro do Fonseca, Cubango, Jurujuba... e outros que de 15 anos pra cá não mudaram praticamente nada.
Já não se pode dizer o mesmo de Icaraí, que por coincidência é o bairro onde reside o prefeito da cidade, num belíssimo apartamento em frente ao mar. Considerado um bairro que "cresce para cima", se tornou incontável a quantidade de prédios luxuosos que foram levantados nos últimos anos, sendo um dos pontos onde a classe média alta carioca anda indo se refugiar já à alguns anos.
Se analisarmos o crescimento de Niterói apenas por Icaraí, chegaremos a constatação de que descobrimos a "Manhattan carioca".
E não há dúvidas de que essa mesma alta classe média se sensibilizou com a Fátima Bernardes anunciando o caos em sua cidade direto do Morro do Bumba, mas ao mesmo tempo não haveria de ser nada que a novela das 8 e os barzinhos das sextas niteroenses amenizassem o impacto causado.
Os anos e décadas passam, os problemas se perpetuam. Estamos às vésperas de uma Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil, em particular, no Rio de Janeiro. Novamente estamos na busca da tal modernização da cidade. A história se repete comprovando a inexistência de sua linearidade e o desafio que nos é colocado agora é: erramos como 1904 ou buscamos outro rumo?
Sérgio Cabral, Eduardo Paes e Jorge Roberto Silveira estão respondendo essa pergunta com muita frieza, em plena fase de discussão sobre divisão dos Royalties do petróleo. O que podemos perceber até então é que em pleno século XXI o Rio de Janeiro volta a ter seu Pereira Passos.


Marcelo A. O. J. Leite.