quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Décimo Terceiro Apóstolo.


Registe já o leitor, seja qual for a sua condição, classe, casta - ou função - que não venho brincar com assuntos tão sérios como o cristianismo. Faço o aviso porque isto é uma terra de gente susceptível, que preza muito as convicções dos seus avós e tem ainda na memória os bons tempos em que se se celebravam festivos de autos-de-fé, ou aquelas solenes execuções que punham em feriado e movimento uma cidade inteira, como foi o enforcamento do estudante Matos Lobo, em 1942. (Ao leitor curioso,e, como se diz, ávido de emoções fortes, recomendo o relato de António Feliciano de Castilho, publicado na Revista Universal Lisbonense e transcrito por Sampaio Bruno em Os Modernos Publicistas Portugueses: é uma peça fina e bastante provativa da benignidade dos nossos costumes.)
Desviei-me, mas torno à matéria. Repito: não venho brincar com uma religião que em dois mil anos de existência e está fazendo um sério esforço para compreender o terreal mundo em que vive. Acresce que Portugal é uma país maioritériamente cristão, e a liberdade religiosa autorizada por lei não me dá a mim a liberdade de desencadear novas guerras santas. Nem eu queria: sinto-me bem neste ateísmo pacífico, nada belicoso, que é o meu.
Pois nos tempos em que Cristo andou pelo mundo andavam com ele os apóstolos, cujos nomes aqui ficam para quem os esqueceu, ou nunca os soube: Simão Pedro, Iago, filho de Zebedeu, João, André, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Iago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão Cananeu e Judas Iscariotes. Eram doze, e tirante o último que foi o malvado, andaram depois pelo mundo a pregar a boa nova, a baptizar, a converter os gentios, em suma, a propagar a fé. Foi-lhes dado o poder de falar todas as línguas, de tão miraculosa maneira que as pessoas "os ouviam falar a elas cada uma na sua própria". Se a lembrança dos textos não me falha, todos foram santos, exceto Judas Iscariotes, que se enforcou. A igreja começou a sua história, o por aí tem vindo, a escrever belas páginas e outras menos, entre divisões e cismas, pequenas seitas desviadas do tronco principal, até esta procura de uma unidade diversificada ou, talvez melhor, de uma diversificação unitária, Veremos.
Entretanto, estamos vendo já aqui o décimo terceiro apóstolo. Como os antigos, corre o mundo todo e fala todas as línguas. A par dos métodos que a tradição legou, aplica os novos processos de marketing, utiliza largamente os audiovisuais, incita os continuadores de Miguel Ângelo a desenharem cartazes e os imitadores de Dante a versicularem slogans. O décimo terceiro apóstolo é alto, elegante desportivo, cheira a água-de-colónia, tem as fontes adequadamente grisalhas, a pronúncia saxônica, um pouco ciciada e chama-se Publicidade.
E por que havemos nós de escandalizar-nos? Cada época emprega os meios de que dispõe, quando não os força, como foi o caso já referido do milagre que fez dos apóstolos poliglotas por razões de eficiência. Não nos espante pois que as igrejas do nosso tempo tenham decidido usar os métodos promocionais que deram boas provas na criação de necessidades e satisfação delas, ad majorem sociedade de consumo gloriam.
Em todo o caso (e isto confirma o velho dito de que os cépticos são melindrosos em pontos de religião), causa-me engulhos ver uma cruz a alçada entre grandes anúncios de detergentes e camisas anti-rugas. Como dizia aquela tia velha que não tive, mas que todos tiveram: "Não acho bem." Coitada, já lá está. Poupou-a o benévolo destino a este desgosto.

José Saramago.