
Há mais de cem anos o antropólogo Franz Boas contribuiu para firmar as bases da Antropologia como ciência. Com ele a diversidade cultural passou por novas definições, o que antes era visto como inferior por ser diferente (gênero, cor, raça, crenças, línguas...) passou a serem entendidos por ele como peculiaridades que caracterizam lugares, povos... E que a concepção de superioridade e incômodo com as diferenças são verdades construídas pelos olhos de quem analisa os fatos a partir do seu próprio universo. O Etnocentrismo.
Seu pensamento teve elaboração na mesma época em que o mundo utilizava de políticas eugênicas (higienização social), processos de branqueamento por governos e intelectuais que ainda se apropriavam de pensamentos do século XIX.
No Brasil, um de seus principais seguidores foi o Antropólogo Gilberto Freyre. A obra Casa-Grande e Senzala (1933) deixa bem clara suas influências. Ao expor a vida privada no Brasil colonial, evidencia a importância não apenas do branco europeu, mas dos indígenas e dos negros africanos na formação da cultura e sociedade brasileira.
Todos estes passos evidentemente foram importantes para a construção de análises da compreensão das sociedades e nas constituições que defenderam de forma mais ampla o conceito de igualdade, “pelo menos discursivamente falando”.
Isso não significa que o hábito de inferiorizar, ocasionado pelo preconceito, racismo, o menosprezo pelo que não se enquadravam por padrões pré-defindos a muitas gerações e que de certa forma também já se definiam como culturas consolidadas deixou de ser praticado do dia para noite ou que em pleno século XXI esta prática tenha sido extinta. No caso da mulher, estatisticamente, continua sendo pior remunerada em relação ao homem, o preconceito aos homossexuais, aos negros que continuam sofrendo com o racismo, e o preconceito religioso, tendo em vista que hoje não queimamos os que não são católicos nem os chamamos de hereges mas os julgamos como fanáticos por seus trajes, hábitos ou estereotipamos estigmatizando-os como terroristas fundamentalistas. As novas tribos urbanas que são descriminadas por outras ou pelo padrão social que insistimos nomeclaturar como normal.
Esses padrões de “normalidade” que muitas vezes são impostos na sociedade pelo mercado ou por uma cultura conservadora que não admite transformações em outros tempos chamariam os diferentes de “Bárbaros”.
O Império Romano nos permite ter uma visão nítida sobre este assunto. Ao expandir seu poder político, territorial, militar e econômico por quase toda a Europa foi necessário a cima de tudo pra tornar todas as outras expansões possíveis, levar aos povos dominados o seu modelo de vida, ou seja, expandir sua cultura, sua fé (religião), seu idioma.
Num projeto de romanização por todo o continente foi imposta a ordem por seus modos de dominação. Os que viviam fora dessa condição de dominação eram considerados Bárbaros.
Quando os povos germânicos(bárbaros) começaram a ser expostos ao domínio cultural romano gerou-se um choque poderoso. Apesar dos bárbaros sofrerem o processo de aculturação, as tendências políticas econômicas e sociais que levaram o Império Romano ao declínio foram reforçadas pelas invasões bárbaras, momento que acarretou no corrompimento da cultura romana. Este corrompimento permitiu a miscigenação sem a necessidade de prevalecer aspectos primordialmente romanos e o bárbaro levando entre outros aspectos a criação de diversos idiomas dos quais temos hoje ( português, francês, espanhol...).
Todos estes processos de aculturação e miscigenação fez com que o Antropólogo Darcy Ribeiro apontasse o Brasil como a “Nova Roma”, referindo-se a grande miscigenação racial e cultural que nos deu a peculiaridade que ele mesmo chamou de “ esses povo de milhões de pele morena”. Contudo, ao analisarmos a sociedade brasileira, reparamos que há outra condição etnocêntrica bem nítida. Se o romano identificava o “não-romano” como bárbaro, vendo-o como ser inferior, pagão ou como uma ameaça, por aqui se evidencia outro modelo de bárbaro, o pobre.
As relações que se dão neste quadro de antagonismo classista se apresentam como distanciamento e medo por parte dos grupos privilegiados. Dinâmicas que abriam espaços a políticas de higienização que em outros tempos já foram muito mais explícita que hoje cavaram ainda mais o poço da desigualdade. Com isso, os novos padrões impostos construíram um novo modelo de bárbaro. Mas, diferentemente do romano antigo que buscava a romanização do bárbaro. O “romano” de hoje quer negar a sua existência, através do distanciamento do pobre, reforça a sua marginalização. O “romano” não quer vê-los bebendo em taças de cristais e muito menos quer ele mesmo beber em copos datados. Evidentemente que o Império Romano não desenvolvia a política de igualdade social, o intuito da disseminação de sua cultura era para fins de dominação.
Mas a agravante desta dialética é que o Bárbaro, ele também quer beber em taças de cristal. A análise que o historiador Leandro Karnal faz para este debate vem a ser muito oportuna comparando os desejos do povo durante a revolução francesa aos do povo dos dias de hoje:
“... antes o povo queria derrubar a Bastilha e o palácio de Versalhes. Hoje o povo quer derrubar a Bastilha e viver no palácio de Versalhes”.
O que se faz evidente nesta relação de “querer morar em Versalhes” é que ao conseguir esta façanha logicamente que simbólica, através de conquistas obtidas na aquisição de bens de consumo, o trabalhador deixa de se reconhecer como o “Bárbaro” e passa a reproduzir o preconceito dos quais o impedem de se reconhecer sob suas origens. Ou seja, o “Bárbaro” contemporâneo esquece que também é ”Bárbaro” e ao negar aos seus, nega a si próprio.
Bibliografia:
Boas, Franz. Antropologia Cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2044. 109 p.
Freyre, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob Regime Patriarcal. 51ª Edição. São Paulo. Editora Global, 2006.
Ribeiro, Darcy. As Américas e a Civilização: Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
Karnal, Leandro. A Utopia da Idade Perfeita. Palestra. Café Filosófico, 2009.
Marcelo A. O. J. Leite
...Hum! A possibilidade de um ser humano tornar-se narcisico faz com que ele nege aos seus, pensando que está valorando a si próprio...
ResponderExcluirBom texto querido!
bjozão,
Rosi