terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ode aos herdeiros políticos...


ODE AOS HERDEIROS POLÍTICOS. GANHAM AOS CATORZE ANOS A PRIMEIRA GRAVATA, COM AS CORES DO PARTIDO QUE MELHOR OS ILUDE. AOS QUINZE, SEGUEM A CARAVANA. APLAUDEM CONFORME O CENHO DAS CHEFIAS. SÃO OS CHAMADOS ANOS DE FORMAÇÃO. AÍ APRENDEM A COMPOR O GESTO, A INTERPRETAR HUMORES, A MENTIR HONESTAMENTE. APRENDEM A LEVEZA DAS PALAVRAS, A ESCOLHER O VINHO, A ESPUMAR DE SORRISO NOS DENTES. APRENDEM O SIM E O NÃO MAIS OPORTUNOS. AOS VINTE ANOS, JÁ CONHECEM PELO CHEIRO O CARISMA DE UNS, A MENOS-VALIA DE OUTROS, ENQUANTO PROSSEGUEM VAGOS ESTUDOS DE DIREITO OU ECONOMIA. ESTÃO DE OLHO NOS PRIMEIROS CARGOS; É PRECISO MINAR, DESMINAR, INTRIGAR, REUNIR. SÓ OS PIORES CONSEGUEM ULTRAPASSAR ESSA FASE. HÁ ENTÃO OS QUE VÃO PARA OS MUNICÍPIOS, OS QUE PREFEREM OS ORGANISMOS PÚBLICOS. TUDO DEPENDE DE UM GOLPE DE VISTA OU DOS PATROCÍNIOS À DISPOSIÇÃO. É BEM O MOMENTO DE INTEGRAR AS LISTAS DE ELEGÍVEIS, PONDO SEMPRE A BAIXEZA ACIMA DE TUDO. A PARTIR DO PARLAMENTO, TUDO PODE ACONTECER: DIRETOR DE EMPRESA PÚBLICA, COORDENADOR DE CAMPANHA, ASSESSOR DE MINISTRO, MINISTRO, DIRETOR EXECUTIVO, PRESIDENTE DA CAIXA, EMBAIXADOR NA PQP!... MAIS À FRENTE, PARA COROAR A CARREIRA, O GOLDEN-SHARE DE UMA CADEIRA AO PÔR-DO-SOL. NO FINAL, PARA OS MAIS OBSTINADOS, PODE HAVER NOME DE RUA (COM OU SEM ESTÁTUAS), FLORES DE PANEGÍRICO, FANFARRAS E... FORMOL!

Sobre o autor:
O poeta português José Miguel Silva nasceu em maio de 1969, em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto. Publicou os seguintes livros de poesia: O Sino de Areia (Gilgamesh, 1999), Ulisses Já Não Mora aqui (&etc, 2002), Vista Para um Pátio Seguido de Desordem (Relógio D’Água, 2003), 24 de Março (2004) e Movimentos no Escuro (Relógio D’Água, 2005).

A formação do povo político.


Falar em democracia política é falar do governo do povo. Segue-se que a condição da existência da democracia é a presença de um povo político. Povo político, por sua vez, é aquele que dispõe de todas as condições, materiais e intelectuais, para participar conscientemente e eficazmente da vida pública de maneira direta ou indireta. É aquele que pode votar, aderir a partidos, manifestar-se nas ruas e na mídia, apoiar, protestar, rebelar-se. Povo político é a cidadania ativa.


A ideia de um povo totalmente cidadão é uma utopia. Nas repúblicas ateniense e romana, os cidadãos ativos eram apenas uma parcela do povo. Nas repúblicas de hoje, mesmo nas mais realizadas, há desigualdade nas condições de participação política. Esse fato não nos precisa perturbar. Basta-nos a convicção de que quanto maior o grau de autogoverno de um povo, mais democrático será seu governo, mais sólidas suas instituições e mais justa a distribuição da riqueza social.

A formação de um povo político exige processo longo que varia de país a país. Em alguns casos, com na Grã-Bretanha, ela se deu a partir de uma revolução econômica que implantou o mercado capitalista. Em outros, como na França, sua origem foi uma revolução política que se apoderou do Estado. Em outros ainda, como na União Soviética, o ponto de partida foi uma revolução social. Essas revoluções mobilizaram a sociedade inteira e criaram as condições para a emergência, mais cedo ou mais tarde, de um povo político. Em nosso caso, a dificuldade tem sido maior porque não passamos por revolução alguma. Nosso percurso histórico contornou a violência das revoluções, mas, por isso mesmo, e graças à persistência das desigualdades, foi muito lento na criação de um povo político.

Podemos distinguir quatro povos: o povo dos censos, que equivale ao conjunto da população de um país; o povo político, que é aquele que atua dentro do sistema representativo, sobretudo votando; o povo da rua, aquele que age e reage, mas fora do sistema formal de representação, e o povo silencioso, alheio à política. Um país será tanto mais democrático quanto maior for a coincidência entre o povo dos censos e o povo político e quanto mais reduzidos forem os povos da rua e do silêncio. Concentro a análise no povo político-eleitoral.

No que se refere a eleições, o Brasil foi de 1822 a 1881, na lei e de fato, mais democrático do que os países europeus. Cerca de 1860, por exemplo, votavam no Brasil no primeiro turno 13% da população livre. Na Grã-Bretanha votavam 3%, na Suécia, 5%, na Espanha, 2,6%. No entanto, a lei de 1881, que introduziu a eleição direta, causou grande retrocesso ao proibir o voto do analfabeto e ao dificultar a prova de rendimentos. Na época, 85% da população eram analfabetos. Na eleição parlamentar de 1886, votou apenas 0,8% da população. Foi nessa época que o biólogo francês Louis Couty escreveu que o Brasil não tinha povo, querendo dizer com a afirmação que o país não tinha povo político. A Constituição de 1891 eliminou a exigência de renda, mas manteve a de alfabetização. A consequência foi que durante toda a Primeira República (1889-1930), a participação eleitoral não passou de 5% da população. Nas eleições do centenário da independência, em 1822, apenas 2,9% votaram.

A participação de 1860 só foi recuperada em 1945, quando votaram 13,4% da população. Foram 64 anos de incrível estagnação, quando em outros países a participação eleitoral aumentava constantemente. Em compensação, após 1945, houve no Brasil uma expansão muito rápida do povo eleitoral. Em 1960, o eleitorado correspondia a 22% da população, em 1986, a 51%, em 2009, a 71%. A Constituição de 1988 foi em parte responsável por esse crescimento ao eliminar a exclusão dos analfabetos e baixar a idade para 16 anos. Foi um salto espetacular. Em 50 anos, mais de 120 milhões de brasileiros foram acrescentados ao colégio eleitoral. O aumento não se deteve mesmo durante a ditadura. Entre 1962 e 1986, o eleitorado cresceu em 53 milhões.

O Brasil passou rapidamente a ter povo político-eleitoral. A rapidez da inclusão deu margem aos populismos varguista, ademarista e lacerdista. Os políticos descobriram a nova mina de votos e trataram de explorá-la com as táticas conhecidas. Em 1964, essa súbita avalanche de votos implodiu o sistema representativo, não acostumado à presença de povo. Os milhões que começaram a votar durante a ditadura fizeram um aprendizado torto do sentido do voto. Votar era um ritual ocioso diante da emasculação do Congresso.

Temos hoje um povo político amadurecido, uma democracia sólida? Para voltar às definições, o povo político-eleitoral está hoje mais próximo do povo do censo do que em qualquer outro país, graças ao voto aos 16 anos. O povo da rua, por sua vez, reduziu-se substancialmente. Até o MST faz hoje política dentro do sistema. Quando não o faz, é por conivência das autoridades. Os traficantes que controlam partes do território urbano não são atores políticos. O povo silencioso ainda existe, mas tem peso cada vez mais reduzido. Uma novidade positiva é que, apesar de ser a participação política ainda excessivamente limitada às eleições, ela encontra hoje na internet vasto campo de atuação que está longe de ter esgotado suas potencialidades.

Assim, em termos eleitorais, pode-se dizer que temos hoje um povo político. No entanto, além de ser reduzida a participação fora das eleições, ainda não temos um povo político maduro se levarmos em conta o que Cícero já exigia para a existência de uma autêntica república: a igualdade social ou, pelo menos, legal. Com as imensas desigualdades que ainda temos, sobretudo de renda e educação, os votantes não têm a mesma liberdade de escolha. Apesar dos avanços na redução da desigualdade, o Brasil ainda possui 54 milhões de pobres, muitos deles eleitores. Além disso, 53% do eleitorado não completaram o ensino fundamental. No governo de Lula, esse eleitorado compreendeu a relação de causalidade entre voto e políticas sociais. Contudo, ele vive no mundo da necessidade, onde sua liberdade de escolha se restringe ao cálculo dos benefícios que recebe. É o caso dos 58 milhões de brasileiros que se beneficiam dos aumentos do salário mínimo e da Bolsa Família. Essas pessoas representam a opinião popular, legítima, mas prisioneira da necessidade. Não estão livres para formarem uma opinião pública independente e crítica.

Eis o dilema de hoje: a inclusão social é necessária para reduzir a desigualdade que, por sua vez, é condição para a existência da democracia. Mas, ao reduzir a desigualdade, cria, no curto prazo, um grande eleitorado dependente, terreno fértil para populismos, clientelismos e cesarismos. É o preço do tempo perdido na formação do povo político.


José Murilo de Carvalho - O Estado de S.Paulo

O Etnocentrismo do Bárbaro.



Há mais de cem anos o antropólogo Franz Boas contribuiu para firmar as bases da Antropologia como ciência. Com ele a diversidade cultural passou por novas definições, o que antes era visto como inferior por ser diferente (gênero, cor, raça, crenças, línguas...) passou a serem entendidos por ele como peculiaridades que caracterizam lugares, povos... E que a concepção de superioridade e incômodo com as diferenças são verdades construídas pelos olhos de quem analisa os fatos a partir do seu próprio universo. O Etnocentrismo.
Seu pensamento teve elaboração na mesma época em que o mundo utilizava de políticas eugênicas (higienização social), processos de branqueamento por governos e intelectuais que ainda se apropriavam de pensamentos do século XIX.
No Brasil, um de seus principais seguidores foi o Antropólogo Gilberto Freyre. A obra Casa-Grande e Senzala (1933) deixa bem clara suas influências. Ao expor a vida privada no Brasil colonial, evidencia a importância não apenas do branco europeu, mas dos indígenas e dos negros africanos na formação da cultura e sociedade brasileira.
Todos estes passos evidentemente foram importantes para a construção de análises da compreensão das sociedades e nas constituições que defenderam de forma mais ampla o conceito de igualdade, “pelo menos discursivamente falando”.
Isso não significa que o hábito de inferiorizar, ocasionado pelo preconceito, racismo, o menosprezo pelo que não se enquadravam por padrões pré-defindos a muitas gerações e que de certa forma também já se definiam como culturas consolidadas deixou de ser praticado do dia para noite ou que em pleno século XXI esta prática tenha sido extinta. No caso da mulher, estatisticamente, continua sendo pior remunerada em relação ao homem, o preconceito aos homossexuais, aos negros que continuam sofrendo com o racismo, e o preconceito religioso, tendo em vista que hoje não queimamos os que não são católicos nem os chamamos de hereges mas os julgamos como fanáticos por seus trajes, hábitos ou estereotipamos estigmatizando-os como terroristas fundamentalistas. As novas tribos urbanas que são descriminadas por outras ou pelo padrão social que insistimos nomeclaturar como normal.
Esses padrões de “normalidade” que muitas vezes são impostos na sociedade pelo mercado ou por uma cultura conservadora que não admite transformações em outros tempos chamariam os diferentes de “Bárbaros”.
O Império Romano nos permite ter uma visão nítida sobre este assunto. Ao expandir seu poder político, territorial, militar e econômico por quase toda a Europa foi necessário a cima de tudo pra tornar todas as outras expansões possíveis, levar aos povos dominados o seu modelo de vida, ou seja, expandir sua cultura, sua fé (religião), seu idioma.
Num projeto de romanização por todo o continente foi imposta a ordem por seus modos de dominação. Os que viviam fora dessa condição de dominação eram considerados Bárbaros.
Quando os povos germânicos(bárbaros) começaram a ser expostos ao domínio cultural romano gerou-se um choque poderoso. Apesar dos bárbaros sofrerem o processo de aculturação, as tendências políticas econômicas e sociais que levaram o Império Romano ao declínio foram reforçadas pelas invasões bárbaras, momento que acarretou no corrompimento da cultura romana. Este corrompimento permitiu a miscigenação sem a necessidade de prevalecer aspectos primordialmente romanos e o bárbaro levando entre outros aspectos a criação de diversos idiomas dos quais temos hoje ( português, francês, espanhol...).
Todos estes processos de aculturação e miscigenação fez com que o Antropólogo Darcy Ribeiro apontasse o Brasil como a “Nova Roma”, referindo-se a grande miscigenação racial e cultural que nos deu a peculiaridade que ele mesmo chamou de “ esses povo de milhões de pele morena”. Contudo, ao analisarmos a sociedade brasileira, reparamos que há outra condição etnocêntrica bem nítida. Se o romano identificava o “não-romano” como bárbaro, vendo-o como ser inferior, pagão ou como uma ameaça, por aqui se evidencia outro modelo de bárbaro, o pobre.
As relações que se dão neste quadro de antagonismo classista se apresentam como distanciamento e medo por parte dos grupos privilegiados. Dinâmicas que abriam espaços a políticas de higienização que em outros tempos já foram muito mais explícita que hoje cavaram ainda mais o poço da desigualdade. Com isso, os novos padrões impostos construíram um novo modelo de bárbaro. Mas, diferentemente do romano antigo que buscava a romanização do bárbaro. O “romano” de hoje quer negar a sua existência, através do distanciamento do pobre, reforça a sua marginalização. O “romano” não quer vê-los bebendo em taças de cristais e muito menos quer ele mesmo beber em copos datados. Evidentemente que o Império Romano não desenvolvia a política de igualdade social, o intuito da disseminação de sua cultura era para fins de dominação.
Mas a agravante desta dialética é que o Bárbaro, ele também quer beber em taças de cristal. A análise que o historiador Leandro Karnal faz para este debate vem a ser muito oportuna comparando os desejos do povo durante a revolução francesa aos do povo dos dias de hoje:
“... antes o povo queria derrubar a Bastilha e o palácio de Versalhes. Hoje o povo quer derrubar a Bastilha e viver no palácio de Versalhes”.
O que se faz evidente nesta relação de “querer morar em Versalhes” é que ao conseguir esta façanha logicamente que simbólica, através de conquistas obtidas na aquisição de bens de consumo, o trabalhador deixa de se reconhecer como o “Bárbaro” e passa a reproduzir o preconceito dos quais o impedem de se reconhecer sob suas origens. Ou seja, o “Bárbaro” contemporâneo esquece que também é ”Bárbaro” e ao negar aos seus, nega a si próprio.



Bibliografia:
Boas, Franz. Antropologia Cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2044. 109 p.
Freyre, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob Regime Patriarcal. 51ª Edição. São Paulo. Editora Global, 2006.
Ribeiro, Darcy. As Américas e a Civilização: Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
Karnal, Leandro. A Utopia da Idade Perfeita. Palestra. Café Filosófico, 2009.

Marcelo A. O. J. Leite